Um Fantasma, por definição, é uma criatura que na realidade já não mais possui um corpo e se limita a flutuar, preso em seu túmulo, até cumprir sua etérea função, finalmente alcançando sua liberdade. Os garotos e garotas que moravam e trabalhavam naquela casa eram parecidos com fantasmas. O corpo já não pertencia à eles e, aos poucos, a mente também deixava de pertencer. Não que isso importasse ao mundo anterior, é claro, afinal de contas quem se preocuparia com eles? Quem prestaria atenção nas crianças que corriam pelos portos de Wilhelmshaven? Evidentemente, eventualmente, a polícia se responsabilizava por algum pivete que passava dos limites, mas nada passava disso.
Levi era um desses fantasmas, se bem se lembrava era uma assombração desde os dez anos. Uma assombração, diga-se de passagem, com excelentes habilidades manuais que faziam dele um espectro razoavelmente popular entre os anfitriões e curiosos que desejavam testar a coragem e necessidade de realizar essas comunicações além-túmulo. Existia nele algo além da beleza angelical que era traída pelo nome e pelos tesouros que sua não-vida guardava de cada visitante carnal. Talvez ele estivesse mais para um Poltergeist do que um Fantasma, não que isso importasse. Durante às noites ele era o que era, sonoramente assombrando a casa e, em especial, o quarto no fundo do corredor do segundo andar, com suas lamúrias que muitas vezes eram acompanhadas por seus pares viventes embora muitas vezes a entoação fosse mais relacionada ao bel prazer da carne ao invés da eterna tortura de uma vida sem futuro.
Talvez, por isso, fossem eles chamados de Fantasmas. Intrigavam no começo, despertavam a curiosidade, incitavam os homens - principalmente - a querer tocá-los a fim de testar sua não existência, levando mais da humanidade de cada alma daquele lugar à cada vida, deixando-lhes cada vez mais vazios, mas não ele. Ele poderia sucumbir da mesma forma que os outros garotos, se perder no sentimento de inutilidade e, aos poucos, realmente desaparecer.
Crianças, inclusive como ele, na realidade não existiam. Eram órfãos ou simplesmente abandonados e uma vez que entravam naquela casa, tinham a tendência de não sair… ou pelo menos não da forma que entravam. Novamente, fantasmas são seres desprovidos de corpo, cujo a existência é marcada por uma intensa solidão e o sentimento de que algo deveria ser feito, mas que não sabiam exatamente o que. Mas não ele. Ele tinha no peito aquela necessidade de viver. De ser mais do que um simples Drewitt.
Talvez por isso, naquela manhã em especial, ele tivesse tido a belíssima ideia de não ser um Fantasma. De permitir que seus pés caminhassem pelas salgadas ruas do vilarejo bruxo próximo à sua cidade Natal, deslizando os hábeis dedos em bolsos desavisados e abusando da língua habilidosa para contar a qualquer um alguma história muito absurda sobre o porquê do esbarrão, escondendo sob a saia toda sorte de item que conseguia alcançar…
Até que, evidentemente, isso eventualmente desse errado.
[Testrálios] - Viu a Morte?: Mais vezes do que gostaria.